sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Elas por elas

Espartilhos. Rouge. Vestido bem cintado. Negociável, só a opressão.
Batom. Cílios longos. Salto alto. E pernas pra que te quero.
Mundo ganho. Voou, pilotou, velejou, construiu, musicou, governou.
Críticas e vaias, nariz empinado e peito pra frente.
O cabresto se insinuando, e daí, não é com esta gente.
Ainda que haja choro ainda, haverá ranger de dentes.
E lá vão elas.


quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Dupla vista

“Tudo é uma ilusão”. Constatou o etílico, depois de ver muita coisa em duplicidade.
Uma dupla esquina. Uma dupla de amigos. Uma dupla solidão. Uma jogada dupla. Um duplo fracasso. E um dublê de si mesmo. Seu duplo não vomitava, nem chorava. Seu duplo estava sóbrio e distinguia bem uma saída. Traçava planos com rapidez e os tinha duplos. Para o caso do tão necessário plano B.
O ébrio, cheio de esperanças, olhava sua cópia nos olhos com muita atenção. Prestigiava os gestos do tal, e principalmente, ouvia, distintamente, seus argumentos. Ficou pasmo com tanta precisão. Era tudo que ele precisava ouvir.
 Um contentamento tamanho lhe brotou no peito. Ajeitou-se, aprumou-se.  Desejou, ardentemente, ser o outro.
 Fechou os olhos para realizar seu desejo. Tudo rodopiou dentro dele. A esquina, os amigos, a solidão, a jogada, o fracasso e seu duplo giraram e se misturaram como num caldeirão.
Abriu os olhos e a poção o havia transformado. Era ele mesmo, não tão espirituoso, não mais descolado, ainda não sóbrio, mas completamente lúcido.
Num golpe de dupla vista distinguiu o que queria e viria a ser e não, necessariamente, permaneceria “tudo ilusão”.

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quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Duas lembranças

“Peguei duas” confessei para o terapeuta. Mas não a dedo e sim no tato. Acho que havia muito espaço em branco, ou, talvez, muito apinhado, não consegui distinguir.
Lembro-me de quando deixei essas duas enterradas em algum lugar da cabeça, era para não saírem mais. Mas veja só, aqui estão.
São boas, muito boas mesmo.
Se não emudecesse as lembranças não estaria aqui? Sério, tem certeza?
 Parar, refletir, lembrar no hoje, onde o agora de cinco minutos atrás já é passado, e cinco à frente é o futuro, não dá pra ativar memórias.  É um “ironman” do pensamento.
A conclusão? É você que vai me dar, não? Não, sou eu?
Duas memórias amargas que podem se transformar em sweet things, bem sei.

Vamos ver se dá. 

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Sob medida.


“Acho que a roupa não combina com a idade dela, o que você acha”?
“Acho que ele emagreceu demais, ficou feia”.
“Não é assim que se faz, está tudo errado”.
“Se fosse num país sério”...
“Isso não é amor é acomodação-dependência, não pode dar certo”.
“Não melhora nunca, não tem jeito”.
“Eu jamais faria isso”.
“Deveria ter feito assim”.
“Se enganou, como sempre”.

“Mas que filho da...”

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Instrumental


Diziam que ela falava demais. Cansou-se da mão de obra e com a escassez de matéria prima, emudeceu. Pegou um atalho, mas persistiu no beating.
Primeiro a percussão, as cordas, depois os metais e o sopro. E ia levitando estrada a fora, só no ritmo.
Quando perguntavam “e a velha flama”? Dizia que preferia ouvir.
Ouviu de tudo e mais um pouco. Tambores rufando o descaso. Estancava, às vezes, perplexa com as cordas armadas por sobre cadafalsos, à espreita.  Metais afinados prontos para alguma ferida. As flautas e trompetes anunciando tempestade, pegava só de ouvido.

E ela continuava no acorde. Sem palavras, sem canseira. Sem jargão apropriado, com tempo de sobra para fluidificar.  Não mais precisaria da esgrima da língua afiada. Era só deixar o som entrar dando seu recado. –“Instrumental demais, e daí”?

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Sabe lá.

 Pensa-se não haver nada para dar. Que nada, sempre há.
Cozinhar, costurar, pintar, falar, pairar, cantar, todas são coisas para dar.
“Ter que ter para dar”?  – “Hum, sei lá”.
Conjeturas mil, e as obras? Todas num canto, engavetadas. As mãos paradas.
Reclamações acirradas. Bandeiras empunhadas. Mas as ações? Que nada.
“Levar jeito pra coisa”? Nem é preciso. Preciso é ter coragem.
Coragem para mexer-se, desafiar-se, remexer por dentro e encontrar um quê.
E remexer, remexer coração, pensamento, até que encontre.

 Sabe lá?

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Ensolarado

Pegou do pão amanhecido e serviu-se à mesa. Descontente e acabrunhado.
Sem ideias para aquela manhã, com fastio para o almoço e nenhum feliz futuro para a noite de lua nova.
Olhava em volta e os fatos estavam todos desfocados. Revirava o cérebro na vã tentativa de entender-se e desistia.
Sua cabeça de tão oca, deixava-lhe ouvir o sonar de seu coração emitindo batidas do código Morse.
Pegou da camisa estirada nas costas da cadeira, surrada e batida de tanto tê-lo sentado.
E, então, bateu-lhe uma vontade louca de singrar os sete mares. De deixar para trás as profundezas inóspitas. Abandonar o navio e num bote de um remo só, e sem enjoar, enfrentar a maresia.

Abriu a porta e deparou-se com o dia. Radiante, convidativo, empático, ensolarado.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Solilóquio

Eu quero que meu coração fique a esmo, mesmo.
Quero que continue batendo de porta em porta e nas paredes, até não aguentar.
Eu quero que meu coração permaneça ébrio, sem internação.
Não quero que ele se faça de tolo.
Não quero que ele se renda a mais nenhuma risada.
Quero que meu coração providencie uns não, por dentro, para dar como troco, para os que vierem de fora.
Não quero que amoleça. Não quero que endureça.
Não quero que sucumba pasmo, a mais nenhum dolo eventual.
Quero que meu coração esteja, para sempre, simples e ignorante.

Eu quero... Eu não quero... Eu quero...

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Por quê?

Mil porquês surgem, ressurgem, incomodam, cutucam, se espremem, gemem e finalmente esperam.
Você os engana com respostas breves e frágeis. Fundamentadas em fumaça de gelo seco. Eles insistem e você sai ás pressas, oferecendo seu twitter.
Nada de ligações emocionais, de dependência afetiva. Sua vida e mil porquês, não poderia dar certo. O dia continua o tempo não espera e você tem muito que fazer.
Sobe ao palco, confere o cenário, repassa as falas e está tudo certo.
 Vez por outra, entre um ato e outro, um por que te pega de jeito.
Você não tem como se defender. Sem cacos, sem texto adaptado, tem que responder.
Sobe o cenário, você troca de roupa e te empurram pra última parte.
Com todos te olhando, o por que te esperando e você, e você...
“Merda” não te trouxe sorte. Lá está você, cara a cara com mil caras que também querem saber o porquê, e você, e você...