quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Uma ferida dolorosa

Dano culposo = sem intenção.
Examinou-se a ferida, sua extensão – alarmante. Examinou-se o ferido, sua situação – dolorosa.
Bem devagar, com muita aversão, examinou-se o causador do golpe, era pura confusão.
Sem perdão, totalmente sem perdão.-"Mas se é culposo, como se espera perdão, que seja indulgenciado"?
O causador vai para o cárcere mesmo o golpe tendo sido considerado culposo = sem intenção antecipada de dor. 
O ferido diz que o que importa, foi assim mesmo, doloroso.

E permanece a vítima, o golpeador, a ferida e a falta de intenção, todos no mesmo caldeirão. Ingredientes insanos vão apurando a mágoa. A dor é servida e ninguém quer comer, nem um, nem outro.
O repasto é venenoso. Escolhem morrer da tal ferida dolorosa.

Mas, enfim, depois de algum tempo, sentam-se à mesa. Depõem as lágrimas.

Desculpas aceitas, o amor é servido e não fica nem marca.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Bata e veja quem abre a porta

Sem resposta. Bato outra vez e nada. Penso, bem é só uma vez mais, e enquanto meus dedos se apressam, me vem à cabeça: desista e eu desisto. Não quero mais que as portas se abram. Quero-as fechadas e eu em suspenso.

Se abrirem adeus surpresa. Será um sim, um não, um sorriso, ou um muchocho. Bye-bye suspense.
É bom cogitar, inventar que se receberá uma acolhida favorável, um trato feito e pazes feitas e uma boa dose de sinceridade. Além do mais que graça tem um tete a tete, um chá das cinco e uma porta escancarada.

Me retiro do projeto. Caminho cabisbaixo, sem esperar que abram. Vou tramando a próxima vez. Uma nova pergunta me surge, enquanto ando, mas por certo, não voltarei lá, já sei a resposta.

É sempre a mesma coisa, um pouco de polidez, alguma demagogia, bastante ironia e a prata da casa “bem, acho que resolvemos tudo”, volte sempre.
Sim, voltei e veja, ninguém abriu a porta.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Como se fosse possível

Lá longe, no mar, na solidão de tudo que ainda é inacessível ao homem, flutua o barquinho. Como uma visão em pleno deserto, desliza branquinho e calmo.
Como se prometesse histórias de salvamento. De piratas. De tempestades.
Como se fosse sábio. Como se fosse manso. Como se fosse o elo entre o homem e o infinito.
Talvez, ninguém vá chegar até a praia.
Talvez, ninguém conduza o barquinho.
Talvez, os céus o tenham enviado para que se acreditasse no belo, no puro.
Como se fosse possível, sempre águas plácidas.

Como se fosse possível. 

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Organizando os pensamentos

Você pra cá, este pra lá. Isto pra fora. Você fica no mesmo lugar. Desta vez não vai ser como antes.
É, como doeu. Pensando bem, houve uma cicatrização bem rápida.

Isso já repassei mil vezes. Não posso mais dizer que sim, dizer que não, preciso definir a expressão.
Escolho isso, escolho aquilo? Chega de dúvidas, dúvidas não figurarão mais no elenco.
Chamo as certezas para o palco. Ah! Sim que beleza.

Estou, completamente, convicto disto. Jamais será como ontem.
Convicções, ajustes, acertos, apertos de mão: quero-os todos no consciente, à mão.
Deleto para o abismo do porão da psiquê os trocos, as troças, a avaliação fria.

Fico com você, você, você e você – coisas menos do cérebro e mais do coração.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Comunicação

- “Que as partes se pronunciem” disse o juiz. Pronunciaram-se, mas tão confusos eram os pronunciamentos, que o juiz não ajuizava.
“Nunca se justifique ou se lamente” diz o ensinamento, mas o que fazer quando em juízo.

Persistia, naquela tarde, a Babel da lamentação e da explicação. Não havia intermediários.Promotor e defensor eram os dois, eles próprios, réus confessos. E quanto mais falavam, mais se viam postos em prisão.

O sol já tinha se posto e as partes sem língua pátria, sem interpretes, advogando em causa própria, não se entendiam, nem se faziam entender.

O juiz, então declarou a sentença: “Culpados”. Culpados por não se amarem. Culpados por não dar a outra face. Culpados por se culparem. Por não haver desculpas para a falta de comunicação. Por não comunicarem o perdão. Por não falarem de afeição. Por não deixarem claro que só há uma intenção em toda comunicação— ser entendido. Ter o atendimento da aprovação.

E a pena? A pena era a morte.


Morte às amizades, ao bem-querer, ao chá da tarde, ao cafezinho. Aos belos pronunciamentos de Ghandi, de Mandela e do rei Salomão. Morte a mim e a você, a qualquer um que do amor não dê nenhuma comunicação.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Se pudéssemos

Se pudéssemos trocar de mal e de bem na velocidade de crianças.
Se pudéssemos chamar pro lanche depois de ter o castelo de areia pisoteado, a amarelinha apagada e o tablete todo desconfigurado.
Se pudéssemos nem pensar nas escoriações por dá cá aquela palha. Se pudéssemos chamar para um novo projeto todos aqueles que nos deixaram coxos e estropiados.

Se soubéssemos que o festim resolve todas as guerras e os escombros quando todos são convidados. Se pudéssemos convidar a todos e todos fazerem o convite aceito.

Se nos abríssemos em enfeites para prestigiar a hora do abraço e do “sejam bem-vindos”.

E se despíssemos as rusgas, a roupa sangrenta e esfarrapada.

E se adereçados de alegria e amizade, comparecêssemos ao endereço combinado: o amor.

Ah! Se pudéssemos!


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Tudo era um trote

Não aceitava opinião de ninguém, batia em retirada, toda vez que fosse muito solicitado. Olhava enviesado se mencionassem seu nome. Tinha hora para sair, não tinha hora para chegar.

Chegando, estava sempre de mau humor. Silencioso e no seu canto. Satisfações? Não dava a quem quer que fosse. Nem a mais adorada, nem a ela.

De vez em quando, estava pra cafunés. Sempre nele, dele, ninguém os tinha. Andou adoentado por uns dias, quando se adoentava não comia, não pedia nada.

Certo dia, saiu na hora exata, mas, desta vez mesmo de hora incerta para chegar, não chegou em hora nenhuma. Sua falta foi sentida com muita dor. Choros, chamados, pedidos a Deus, saídas de carro na busca aflita, tudo em vão.

“Miau”, o gato da boa velhinha, fingiu ser domesticado, protagonizou o galã “bon vivant” e arrasou corações. Depois deu de ombros, deixou a casa e se foi para nunca mais voltar.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Gostar de:

“Faça uma lista das coisas que você gosta”, diz o psicoterapeuta. Você fica animado, afinal nem tinha pensado que existe uma lista de coisas que podem te deixar feliz, e é você que pode enumerá-la. Você tem direito – é há muita verdade nisso. Um ser com livre arbítrio, com um mundão como este pela frente, com cores com gente, é, é verdade.
Os psicoterapeutas são espertos e boa gente, te dão o pulo do gato. A primeira coisa que você vai por na lista: de psicoterapeutas, que importa se soar como bajulação.
E aí você pega o ritmo: de mar, de sol, de chuva, de chocolate, de flamboyants, e que mais, que mais?! E uma alegria do fundo do peito invade teus pensamentos. Agora, você gosta do slogan “gostar de”.
A mágica da felicidade pula na sua frente, estende suas mãozinhas mirradas e agora é com você. O duro trabalho do mágico é fazer o truque acontecer.
“Acontece que meu coração ficou frio”, Cartola não podia mais gostar de, mas acontece que o nosso descongelou quando o terapeuta falou.
Vá lá, enfrente a chuva pra comprar chocolate e voilà a chuva até passou.

Siga em frente, vá pro mar e a caminho de lá passe por baixo de um flamboyant, da pra curtir o sol, não tão escaldante. É  a vida é assim, tão simples, tão bela – “gostar de”.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Flamboyants

Generosamente, estendem seus braços folhados até o chão, tão próximos a você com se estivessem te convidando para um abraço.
Não se erguem soberbas, te desafiando a alcançar, lá nas alturas, as dádivas oferecidas. Seguem te agradando e diante de um verão estorricante, são a miragem do paraíso.
E nem precisam de alicerces profundos para o evento de te encantar. Com raízes superficiais e tudo, vão prazerosas e afoitas a alegrar tua passagem.
Desarrazoadamente e inacreditavelmente, mesmo diante te tal generosidade, recebem ameaças de morte. Acusam-nas de destruir o passeio público. “Mas como se é o passeio do público que queremos festejar”?
Flamejantes e alegres, com seus passos retorcidos, seguem tentando desbravar a floresta de concreto, desejando encetar a volta ás velhas origens de Madagascar.

Roguemos a Deus que não sejam deportadas, nem assassinadas e que permaneçam em Paquetá e em toda a Terra. Ó Santa Delonix Régia, ó Flor do Paraíso! Amém.