quinta-feira, 30 de julho de 2015

All right, sem creme de abacate

Criança senta no meio fio e bate as perninhas, enfezada. Pede, o adulto diz não.
O adulto tem vergonha de bater as perninhas enfezado, de sentar no meio fio, mais ainda. A vida, entretanto continua lhe dizendo não.
Entretanto, o adulto fica furioso por dentro e, então, pra tudo diz não. Pra isto, pra aquilo, pra aquele, pra aquela e pra si mesmo. Não, não e não.
Acha merecer tudo com laços, com calda, merengues e cremes. Sim, é ele, aquela criancinha no meio fio. Mas veja só, já cresceu.
E agora? Nada mais o consola, nem balas, nem sorvetes e até mesmo bombons.
Permanece batendo as perninhas e dizendo não só de picardia.
Um dia, provavelmente, vai perceber que a vida pode não ser de tantos doces, mas vai depender dele, ser de mais “sim”.

Vai perceber que é preciso conceder e dizer: “All right, mesmo sem creme de abacate”.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Sou eu

- Alô, quem fala?
- Sou eu.
-Eu quem?  Desligo a coragem acabou. De convidar para um lanche. De inventar alguma coisa, para esconder que queria falar com amor.
“Eu quem?” Ninguém, sou eu ninguém. A recusa da identidade amorosa dói tanto.
Seu irmão querido não te identificou, então não vem. Para o amigo tua voz soou estranha.                          
“Tem duas ligações entrando, quem está falando mesmo”?  Diz teu parceiro.
Toco as teclas, indecisa, enquanto elaboro uma desculpa por ter ligado. A memória das recusas e dos senões tecla em mim.
 Os dedos ficam cada vez mais lentos e a discagem não continua.
Ando pela sala repassando as coisas do amor. Não consigo achar nada de errado em ligar.
Não vejo intromissão, não distingo pieguice, não sei como amor pode atrapalhar.
“É uma questão de respeitar o tempo do outro”. Eu cá comigo- “é mesmo”?
Ando pela cozinha. “Será que amanhã será melhor dia pra ligar”? Será que não precisarei me apresentar. Minha voz será logo reconhecida, quando disser sou eu?
-“Sim, que bom te ouvir”, do outro lado da linha. Amanhã, talvez amanhã.



quinta-feira, 23 de julho de 2015

Livros de colorir

“A vaca amarela babou na panela, quem falar primeiro come a baba dela”.
Os pequenos não podem lembrar. Os grandes não estão pra brincadeiras. Os pequenos pra brincadeiras não estão, com seus ipads em punho, duelam nos jogos vorazes.
Os grandes, já cansados, não conseguem sair da armadilha em que estão. Afundados até o pescoço, num visgo não deletável nem desinstalável. Seus dedos têm a doença do movimento repetitivo. Seus cérebros desligaram de modo inapropriado e deram boot.
Enquanto isso, numa galáxia distante os pequenos se agrupam ávidos de adultismo. Nunca foram a Terra do Nunca e nem querem saber.
Então procurando a salvação e evitando o apocalipse inevitável, os grandes tentam atualização com Peter Pan. Que nada, a perspicácia e a intuição os abandonaram.
Buscando de bar em bar, de consultório em consultório e nada resolveu.
Mas eis que “na rua 24 onde a mulher matou um sapo com a sola do sapato”, uma loja de livros surgiu.
Os grandes, de lápis de cor em punho e livro de colorir na mão, foram encontrar os garotos felizes, com pó de pirlimpimpim e tudo.

Enquanto isso, uma salvação acontece no front para os pequenos. A professora ensinou alguma coisa doce: “o doce perguntou pro doce qual o doce que era mais doce e...”

terça-feira, 21 de julho de 2015

Amigos, como não tê-los?

Na caçada do mamute, você e a lança, sozinho, não dá. É preciso outro para distrair a fera, um amigo.
Na festinha, você convidado, deslocado, é preciso alguém que goste daquela música, goste muito e ache aquela outra chata, um amigo.
Na escalada do Everest, tanto frio, tanta solidão. Na verdade, você precisa de alguém para pensar junto, esquentando a decisão, um amigo.
Quando você descobre um livro, o mais legal, e você precisa falar daquele parágrafo genial, só alguém pode dividir sua euforia, um amigo.
“Na lanterna dos afogados”, você pede “vê se não vai demorar”, só quem pode chegar lá, um amigo.
Amigos podem ser de qualquer cor, de qualquer lado. Que falem qualquer língua, que não falem nada. Podem ser consanguíneos ou que não tenham sangue nenhum.
Podem ser vivos ou mortos, só precisam ser amigos.

Amigos, como não tê-los? Impossível!

Olá amigos, repetindo, em comemoração ao dia de ontem. Muitas alegrias.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Somos iguais

Se fossemos não haveria tanta estatura. Cabelos de tantos tipos cores e tamanhos não veríamos. Peles diferentes não teríamos. Se fossemos possuiríamos coração, o mesmo que bate e que ama. Não infartaríamos em morte súbita. Só nos reconheceríamos por semelhanças.

Não seríamos medidos em palmas. Viveríamos debaixo do mesmo céu, sol e lua.
Se fossemos iguais poderíamos provar das mesmas iguarias. Provaríamos que superamos todas limitações, igualmente. Não levantaríamos bandeiras e nem para lutas armadas.

Somente em algo não diferiríamos em ser metidos a sete palmos. Banidos, não importando vaias ou aplausos. 
Uso ou desuso. Com carros novinhos em folha ou trabalhando em pé todo o dia.


Se somos iguais? Quem sabe?

terça-feira, 14 de julho de 2015

Os últimos serão os primeiros

Ajeitam-se na fila como podem, contendo a insânia. Respeitam-se a meia boca. O vale tudo está lá nas prateleiras. E lá se vão os homens, sedentos de coisas, não de água.
A fila anda engasgada, serpenteando, se fazendo de besta, tão grande, tão poderosa. Guardando o troféu lá na frente.
E lá se vão os homens, acotovelando-se. Atentos para que ninguém lhes passe a frente.
A aflição cresce, cheia de si, dentro deles. Eles cheios de aflição para que lhes chegue a vez. A vez de conseguir o que foram buscar. Cada minuto de espera exala mil memórias, conjeturas.
E se isso... E se aquilo...
 E lá se vão cheios de fome de poder, não de pão. O coração vai também, aos saltos, irritado e ansioso. Quanto mais por último, mais desesperançoso.
Então nos últimos lugares, o tal desalento faz um milagre. Os homens estancam, e com ele no peito, deixam de arfar.  “Pra que fustigar”? “Por que disputar”?
 Não querem mais as uvas, estavam verdes mesmo.




quinta-feira, 9 de julho de 2015

Nada parece se encaixar

Nada parece se encaixar, mas pode vir a se.
Enquanto não, ficamos por aí, a esmo.
No sentido figurado e nos sentindo figurantes em um plot sem roteiro.
Está certo, está errado. Está farto, está pouco.
Fez bem, fez mal. Muito gordo, muito magro.
Ora amando, ora odiando até à morte.
E essa, também parece não se encaixar na vida.
Mas essa outra acha que sim. E quanto mais se tem vida, mais se pensa na morte.
Ser metido dentro da caixa, aí mesmo é que não se encaixa.
Tantos sonhos. Tantos desgostos. Tantos afazeres e tudo por nada.
Sim, se pode ser feliz, mas isso, também passa.
Não, não se encaixa.  Perseguir, fisgar, agarrar a vitória é o acordo.
Mas, perder faz parte do jogo. “E aí, parece que se encaixa”?
Então, no ermo, numa noite estrelada parece que sim, tudo se encaixa.
 Estava lá o tempo todo, o vir a se.
Encaixa-se, se encaixa. É preciso ter olhos de ver.


terça-feira, 7 de julho de 2015

Se deres de beber

Estendendo as mãos, pegando o recipiente cheio dela. E mais sede e mais sede no pote.
Sua transparência, seu jeito inodoro, quanta saudade. 
Estendendo a garganta seca, os olhos murchos sem palavras nem prantos. E por aí, cabisbaixo vais. Cativo da culpa de tê-la negligenciado.
Se tivesses cuidado. Se não tivesse secado teu ardor. Se tua formosa natureza de bondade e presteza tivesse vingado e tivesses mimado-a...
Só há um silêncio fúnebre na fonte. E tu sentas lá se lembrando de como era ouvir os passos dela.
E mais nada no pote. Se deres de beber, vai ser do que te falta.
Agora, agora mesmo te falta atenção. Falta-te um quê de premunição. Falta-te profundidade na essência do que não te pode faltar.

Pega o pote, vá até ela. Plante-a, regue-a e no futuro teremos como dar de beber.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Nem tico nem taco

Será que o universo se importa? Eu queria mais tempo de duração. Queria mais garantias.
Gostaria muito de um manual de recomendações específicas, para casos específicos e mesmo um de modus operandi.
Se a Terra é um cisco na galáxia, imagina só o que eu sou. “Vai tentar entender”, acho que é realmente o que se diz, na atualidade, quando tudo é um mistério.
Fico aqui tentando saber das coisas, logicar, otimizar. Tentando fazer um upload na minha existência.
 Será que o universo se importa?  Nem sei por que desejo tanto uma resposta positiva. Talvez porque existir custa muito caro. Porque não adianta pedir devolução à fábrica.
Continuo aqui, em frente ao espelho, perguntas e respostas vão e vem. As primeiras são cortantes e positivas, as segundas, nem tanto.
Só sei ao certo, certíssimo, que aqui neste cisco da Via Láctea, o que importa mesmo é o sucesso. E na falta dele, a opção é um pulo no vazio. Muito utilizada, por sinal, nas redondezas.
Sucesso ou um pulo no vazio? Tédio ou um universo parceiro? “Vai tentar decidir”. Acho que o que se diz, numa expressão bem antiga, quando dois pássaros nos voam da mão é: “viu, nem tico nem taco”. O espelho permanece complacente, não concorda nem desmente.