quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Pistas de si

O lápis caiu. Rolou para o canto onde ele não alcançava. O laboratorialista desistiu de tentar se enfiar entre a escrivaninha e o frigobar vermelho. Sem canetas que escrevessem, sem rede, precisava, desesperadamente, do instrumento de grafite para anotar a fórmula que comporia o relatório cobrado para ontem.
Sua sala de trabalho era seu esconderijo. Desaparecido no laboratório dava conta de toda demanda, até não darem conta dele. Pensar, anotar, memorizar era sua rotina, olhar, nunca. Ver em volta, nem que fosse uma pequena espiada naquela maravilha de árvore que se espremia nas vidraças só para lhe chamar a atenção, não, certamente, não fazia parte de sua atuação.
Nesse dia fatídico, a chuva insistiria em mudar toda história do patologista. Batucava de mansinho na janela, fraquinha, a princípio, decidida depois.
Nunca olhara, mas, agora olhava extasiado, sem movimento, sem fala. A chuva inundou seus pensamentos. Continuou escorrendo pelas vidraças, pelas folhas, parecia que lavava o dentro dele. A fórmula se esquivou e se encolheu num canto, feito o lápis. As palavras, seus bordões empilhados, começaram a escorrer- lhe peito afora: desconfiar, bem escondido, tudo vai mal, jamais, não eu, não faz sentido, não é lógico.
Ele amoleceu feito água.  A partir daquele instante, quis deixar pistas de si. Quis ter face book, twitter, inventar versos e músicas, quis ser roqueiro. Os olhos rasos d’água continuavam embevecidos com o fenômeno divino.
As batidas na porta fizeram voltar-lhe o raciocínio, a fórmula, o relatório, o tino. Por um breve momento, compreendeu ser cúmplice e vítima de um assassinato.
Atendeu a porta, entregou o documento incompleto e voltou a se enfiar entre o frigobar e a escrivaninha, vermelho.



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